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As motivações de um ex-sedentário: O que se passa na cabeça de um corredor que ainda não desistiu do atletismo?
Eu ia começar esse texto com uma comemoração da minha centésima corrida. Planejava publicar no mesmo dia, comemorando sobre o tempo que passou e os amigos que fizemos ao longo do caminho. Pois decidi revisitar a data da minha primeira corrida e calcular a quantidade de dias que se passaram desde que comecei esse esporte. Que erro. Melhor seria viver na ignorância? Ou encarar a crua realidade de que eu não sei contar? Em 5 dias diferentes eu repeti o número anterior… Ou seja: sexta passada foi minha centésima corrida… Parabéns pro tonto que fui eu nos últimos 10 meses! Infelizmente, ainda não aprendi a modificar meu microondas numa máquina do tempo para a enviar textos pro passado. Não tem como avisar meu eu do passado pra publicar antes, então vamos publicar no dia que calhou mesmo. Hoje completei minha centésima quarta corrida.
Talvez você me pergunte “por que você gosta de correr?” Durante todos esses meses, ouvi essa pergunta uma centena (heh) de vezes. Desde que eu adotei corrida como meu esporte baixo-gasto-baixo-comprometimento, para ocupar parte da minha rotina, ninguém nunca ouviu a resposta completa. Não é que eu não saiba, ou não queira falar, mas porque a real é que eu não confio em mim mesmo para dar uma resposta concisa. Uma graduação em psicologia transformou um menino sensível, com propensão a compartilhar trivias num xarope. Toda a sentença que elaboro sobre mim tem que ter a porra de uma conjunção de adversidade, um advérbio indicando frequência, uma locução verbal modulando intensão. Não existe resposta simples para nada.
Como tolo não sou, aprendi durante a vida que tudo tem seu momento. Nem todo mundo quer ficar 15 minutos ouvindo especulações sobre variáveis fisiológicas e culturais. Nem todo mundo precisa de uma discussão sobre a definição de “gostar”. Às vezes, as pessoas só souberam que você levantou a bunda do sofá e tão jogando papo fora. Por isso, quando me perguntam, eu costumo escolher aleatoriamente um dos motivos (reais, mas) incompletos.
Uma das pessoas que eu sei que não está me perguntando algo por obrigação ou educação, mas curiosidade de verdade, é meu irmão. Se tem uma coisa que eu posso contar na minha vida é com a certeza de que meu irmão jamais fingiria interesse nos meus hobbies simplesmente por educação. Quem você acha que ele é? O cara valoriza o silêncio. Ótimo termômetro, inclusive, O Irmão™, para saber se você é capaz de ilustrar com vivacidade a sua mais nova obsessão da semana. É tipo testar sua lábia tentando vender uma caneta prum desavisado na rua. Se eu fico muito envolto no que ME interessa, se eu subo de pé no sofá e o assunto fica muito EU… ele só sai andando sem falar nada, zero cerimônia, sem nenhuma amarra do contrato social de dar palco pra maluco. Isso, ou me manda ficar quieto, também serve. Então, quando ele me perguntou o que eu gosto em correr, logo no início, eu dei uma bela pausa, considerei alternativas e dei minha melhor resposta. O problema é que isso faz meses e eu pensei em coisas novas.
Bom tirar o óbvio de cena: eu simplesmente gosto de correr. Gosto de me movimentar rápido, deslocar-me de A a B, seja pelo trajeto mais curto ou pelo mais interessante. Isso se traduz em outros interesses: gosto de bicicleta, caminhada, olhar a janela do avião, a liberdade que um bom transporte público pode dar… Gosto de ver o mundo mudando ao meu redor, conforme caio com um pé em frente ao corpo. Uma vez, no meio de uma brincadeira de pique, uma amiga me disse que eu parecia muito feliz. Percebi que tinha razão. Nossa, como me senti visto naquele dia.
Durante meus últimos meses correndo, eu tive muito tempo para refletir. O engraçado de correr é que você sempre se encontra com muito mais tempo em mãos para pensar na morte da bezerra do que você imagina. Ledo engano achar que você vai estar SEMPRE com episódios de podcast baixados, SEMPRE com os fones funcionando, SEMPRE capaz de prestar atenção naquela música que você jurou que iria bater e não bateu. Às vezes você tem uma mente vazia e 5km de asfalto pela frente. No meu caso, muito desse tempo foi ocupado observando o ato de correr que ocorria ao vivasso.
Viu só o que eu fiz? No último parágrafo eu já matei umas três coisas que eu curto em correr. Que eficiente, não é mesmo? Mas serei mais específico.
Aprecio a corrida por ser uma atividade do dia em que eu faço outras atividades que não as faria por si só. Se alguém me botar numa cadeira pra ouvir música ou podcast eu PASSO MAL, pois eu PRECISO lavar uma louça, jogar um jogo, estar dentro de um ônibus. Recentemente, eu tenho curtido baixar álbuns novos e ouvir durante a corrida, porque, entre aquecimento e corrida, minha rotina tem cerca de 40 minutos de orelhas ociosas. Se for para conhecer coisas novas, eu prefiro ter espaço para prestar atenção na música. Sempre preferi músicas familiares, mas acho que nunca ouvi tanta coisa nova quanto hoje em dia, por causa da corrida.
“Boniiiito! Quer dizer que o que você gosta na corrida é conseguir fazer correndo coisas que não são a corrida?” Nessa vida de sofrimento intermitente, quem não faz isso? Me aponte uma girlboss e eu te direi alguém que descobriu que dá pra aproveitar a vida correndo de si mesmo. Então, seria isso que sou? Uma girlboss do atletismo? Peço para deixar a definição do meu epíteto nas mãos dos historiadores.
Acredito que minha parte favorita varia com o dia. Achei mais didático começar com os prazeres mais fáceis antes de entrar na abstração.
Não sei se é impressão, porque não medi nada no início, mas tenho certeza que o pai aqui tá pernudo 🦵🦵🦵🦵. E eu genuinamente indico uma dúvida, pois não sei se correr 30 minutos, 3 vezes na semana, é exercício suficiente para uma hipertrofia notável. Pode ser tudo da minha cabeça, imperceptível. Mas se for, também, tá tudo bem. Fica escancarado o efeito que usar shortinho de corrida tem sobre a psique humana.
Agora, saindo dos efeitos surpreendentes, o aspecto que mais me moveu a começar a correr, em primeiro lugar, foi o social. Só de ver amigos correndo dá vontade de correr. Sem muita explicação mesmo. A graduação também me ensinou a aceitar certas coisas sem precisar de explicações sempre. Atualmente, isso se traduz em oportunidades de correr rotineiramente, participar de provas ou treinos com amigos e conhecer pessoas novas. Um aspecto tangencial (não exclusivo da corrida, mas sim do tópico “sociabilidade”) é que quanto mais coisa você faz e aprende, mais em comum você pode descobrir ter em comum uma dada pessoa.
Nunca fiz um registro de emoções desde que comecei a correr, para avaliar pessoalmente, mas de tanto ouvir sobre, não posso deixar de mencionar a redução de ansiedade como algo que gosto na corrida. Na época que saía só para caminhar, eu sentia muita diferença nas minhas preocupações. Caminhar sem rumo por 20 minutos sempre me ajudou a reduzir a ansiedade. Não me parece extrapolação achar que a corrida tem contribuído com meu estado emocional recente.
Falando no presente, aprendi a gostar das sensações corporais associadas ao exercício aeróbico. Costumo ouvir piadas de que correr é um sofrimento autoinfligido. Por mais fácil que seja repetir a piada aqui e seguir em frente, quero salientar que é só uma forma humorada de falar sobre algo profundamente humano (animal?). Nossa relação com a dor é muito evitativa, mas acho que ela tem lugar na nossa vida. Quando faço muito esforço, sinto uma cascata de pontinhas nas mãos, nos pulmões. Parece que eu sinto o sangue circulando nos meus capilares. Pode ser clichê, mas me sinto vivo. Melhor, me sinto vivendo. Me lembro que tenho um corpo, composto de matéria, células, tecidos…
Acho que isso tem tudo a ver com outro fenômeno que me entretém quando corro. Quando corro muito intensamente, eu fico fico burro. Pensamento zero. Apenas eu e minhas sensações corporais. Frente a frente, sem desculpa ou para onde fugir. Como um vizinho que te encara no elevador do prédio. Às vezes, fazer esforço físico intenso as vezes sequestra meu cérebro dos meus pensamentos e sou obrigado a #ViverOMomento. O vazio me dá perspectiva do quanto que acontece na minha cabeça o tempo inteiro. Nem sempre é preocupação, nem sempre é algo ruim, mas é sempre algo. E parabéns à espécie por ter desenvolvido essa ferramenta incrível, pois não seríamos metade do que somos sem nossos pensamentos intrusivos, obsessivos, ruminantes… Mas sempre que passo correndo pelo vazio, eu imagino que deve ser assim que meu cachorro se sente em 100% do dia.
Agora, o outro lado da moeda: se corrida intensa te deixa sem pensamentos, quando você se acostuma a correr e faz um ritmo mais leve, uma coisa que não falta é pensamentos para ocupar o seu tempo. Pra mim, qualquer treino nos primeiros 3 meses era “corrida intensa”. Hoje existe nuance. Quanto mais rápido eu vou, menos pensamentos. Nesse espectro, existe uma faixa especial em que minha cabeça parece funcionar inteiramente na base de associações livres. Vezes circulares, vezes originais, caóticos, ordenados, mas sempre orbitando o limiar do presente com passado e futuro. Particularmente, é um ótimo termômetro para entender quais são minhas preocupações mais atuais. Dá para aprender um bocado sobre si, observando qual coisa surge mais frequentemente na sua cabeça.
Em níveis altos de intensidade, você não reflete, você ricocheteia. Você vai tombando de um pensamento pro outro, um pensamento NO outro, cada vez mais rápido, o atrito começa a polir as pontas e a aspereza de tudo, até que ideias só surgem e seguem sem muito drama. Não importa a magnitude da ameaça, tudo sai amaciado no tambor rotatório da mente. Eu curto. Às vezes, são coisas nada a ver ou indesejadas, mas botar lado a lado equaliza tudo para um mesmo nível de ruído reconfortante. São apenas sinapses, no final das contas.
Espero não ter esquecido de nada, mas também não crio expectativas. Tenho certeza que vou pensar em mais alguma coisa no dia seguinte que publicar este texto. Parte da graça é essa. Escrever tudo isso foi um exercício de sintetizar tudo que aprendi sobre mim mesmo nos últimos 10 meses enquanto corria. Algumas dessas talvez eu até já soubesse antes, mas tive certeza depois de escrever sobre. Podia ter sido com qualquer outro esporte, qualquer outra atividade. Um dia após o outro pode te dizer muito.
Psi. João Guardini